feita por Fernando Paulouro das Neves em Castelo Branco.
Na contingência de um tempo em que o homem lentamente se vai tornando a
medida de coisa nenhuma, nestes dias em que a desumanidade, essa
banalidade do mal que julgávamos ingenuamente ser um mero arcaísmo do
passado, voltou para nos atormentar a vida, é na poesia que ainda
podemos reencontrar o intacto refúgio do futuro, a primordial esperança
que nos ajuda a olhar em frente.
Nestes tempos, pois, que parecem ser, outra vez, os que Sophia gritou em
versos (“Tempo de solidão e de incerteza/Tempo de medo e tempo de
traição/Tempo de injustiça e de vileza/Tempo de negação”), ou os que
Torga denunciou em Dies Irae ( “Apetece cantar, mas ninguém canta./
Apetece chorar, mas ninguém chora./Um fantasma levanta/A mão do medo
sobre a nossa hora”), celebrar a obra e a poesia de António Salvado é um
puro reencontro com o dia claro, um aceno à alegria dos instantes, a
reafirmação de um tempo em que a humanidade triunfa sobre todos os
desígnios do mal.
A poesia de António Salvado é um universo em que se configura esse
compromisso de felicidade, através do belo e do amor, essa visão de uma
natureza em que a plenitude elemental da realidade telúrica, que é o
mundo que abarca o seu olhar, é um incessante louvor de vida, que se
sobrepõe sempre às nuvens negras dos dias, e tudo isso na síntese maior
que o amor ocupa na sua arte poética.
Esse universo poético, feito de tantas diversidades, é o percurso de uma
biografia singular sobre a qual me tenho debruçado, muitas vezes,
sempre ganhando no prazer da sua leitura, que contém sempre tantas
virtualidades culturais, novos continentes do saber. De muitas coisas
que escrevi sobre António Salvado, gosto particularmente de reler
algumas palavras que vão ao encontro daqueles retratíssimos de que
falava Herberto Hélder (seu amigo e companheiro no início da aventura
poética) quando queria trazer à superfície da sua poesia linear, dizia
ele, “a narrativa de um homem”.
Então, há alguns anos, escrevi o que pretendia ser a articulação do meu
querido Poeta com o lugar primordial da Beira na sua poesia , e, ao
mesmo tempo, descobrir de que forma se traduzia o compromisso ontológico
do autor com a palavra. No fundo, procedi a uma revisitação do lavrar
de palavras de António Salvado, no seu longo ofício de paciência de
recriação da língua, em busca desse destino, que outro amigo, Eugénio
de Andrade dizia materializável “quando o ser da luz for/o ser da
palavra”
Escrevi, então:
Já retratei, por mais de uma vez, o que significa esse labor na poesia
portuguesa do nosso tempo e o que a consubstancia como aventura criadora
única que ilumina os dias. Vou à procura de palavras antigas, como se
estivesse a ver António Salvado, ele e a sua solidão, na densa
circunstância de poetar. Palavras minhas a páginas tantas: … António
Salvado soube resistir à contingência da “província” (no que este
conceito tem de arqueologia mental persistente na sociedade portuguesa),
soube pensar o país de dentro para fora, e ter a suprema ousadia --
nunca perdoada -- de fazer coisas, promover a cultura dentro de uma
cidade e de uma região, num território onde o pensamento, não poucas
vezes, vive exilado. Muitos fingiram ignorar o seu trabalho, alguns
olharam de viés a sua obra. Salvado resistiu a tudo.
Se a poesia é o lugar da realização do ser pela palavra, é nesse
universo criador onde se unem os dias (Kaváfis) e se aquecem os corações
fraternos (Vicente Aleixandre) que encontramos uma biografia feita de
versos, que é a vida de António Salvado. A fidelidade a um compromisso
com o homem e com as raízes fisicamente próximas, eis o chão verbal dos
seus versos: registo telúrico, espaços de maternas águas, terra de
flores e oferendas corporais, que ardem nos instantes, “coração da vida a
latejar” (verso do poeta).
A poesia de António Salvado é essa mesa farta para o pensamento, povoada
de cheiros, paisagens, rostos, mãos, sol, terra e pedras, neve, frutos e
giestas, enseada onde se acolhem inquietações (“pouso a minha ansiedade
no pilar da noite”, outro verso de Salvado), mas onde também se aquece o
corpo do coração (que nunca é inacabado) de uma escrita que é um lugar
primordial de humanidade. É, pois, no país dos seus versos (tantos
títulos, milhares de páginas) que a sua biografia se dissolve, num
ofício rigoroso de palavras, na configuração clássica de uma cultura a
pensar na universalidade, num poetar que, como diria Drummond, “é uma
luta com as palavras, mal rompe a manhã”. Face à sua poesia, poderíamos
afinal dizer com António Ramos Rosa que ela reflecte “a inscrição do
mundo nela e reciprocamente a sua inscrição no mundo” pois esta relação
arterial, penso eu, faz parte da sua essência.
Feito o retratíssimo de uma obra e de um homem, é tempo de falar do seu
último livro Ecos do Trajecto seguido de Passo a Passo, que é a mesa
fraterna da poesia à volta da qual hoje aqui nos reunimos. Estamos em
face de um livro excepcional que, nas duas vertentes dos poemas que
reúne, é uma dilacerada introspecção interior à memória de uma dor
vivida no fio temporal da sua particular experiência pessoal. E a
primeira nota, nascida da leitura, primeiro do longo poema Ecos do
Trajecto, que reúne 108 poemas, e depois de Passo a Passo, onde a
poesia, prosseguindo o carácter vivencial dos tempos próximos -- e, por
isso, este volume alcança uma unidade temática de grande densidade --,
assume outro formato.
Num e noutro caso, não se trata de uma imprecação exasperada sobre a
realidade do “trajecto” e dos “passos”, pois o seu “ofício cantante”
(tomo aqui de empréstimo o título de Herberto Hélder) é de uma tocante
sobriedade verbal, pois não quer o autor “fingir que é dor/ a dor que
deveras sente”.
Só um grande poeta pode falar assim deste percurso, deste “Trajecto”,
numa simbiose entre o seu tempo interior e o tempo que flui, os dias que
sucedem às noites, com as suas mutações e os olhares subtis da paisagem
, nas suas quatro estações, como na sinfonia de Vivaldi.
Ah, a pureza dos ribeiros
do meu lugar, a limpidez
do seu fluir como corolas
de fragrantes flores
desfolhadas à tardinha
quando o sol se encaminha
para renascer mais longe.
Para depois acrescentar:
Não é em vão que o meu
lugar me acompanha: ele
que me fez da terra,
que me deixou respirar,
que me insuflou o fogo
da criação, que fez dele
brotar a água que bebo.
Este é o segundo poema de Trajecto e dá o tom e marca o ritmo de uma
aventura poética que é, toda ela, uma música de palavras que,
sobrevoando o tempo real, nas suas transmutações, é sempre um canto de
superação da noite em busca do dia claro. Uma poesia, também, feita de
luz, na dicotómica perplexidade entre a escuridão e o dia, entre a morte
e a vida, aquela situação limite que levou Goethe a pedir mais luz.
Porquê esquecer? será provável
anular, ao nascer do dia, a claridade,
o ritmo cadenciado das estações,
a disposição harmoniosa dos seres
no universo, o nascimento e a morte?
É a esta interrogação crucial que o poeta responde, ao longo dos 108
poemas, sempre no cruzamento das suas horas (ou minutos?) com a
substância do tempo, na metáfora entre a vida e a morte, na angústia da
incerteza de habitar tempo futuro, um frémito no meio da solidão.
Por vezes nuvens negras
assomam na cidade desprotegida
e uma chuva violenta
desfere o seu ímpeto
sobre casas e pessoas
e o ar completo escurece;
a cidade sem tranquilidade
perde o seu perfil
de pequeno mundo calmo,
sem se aperceber que talvez
uma tempestade apague
as luzes já entretanto ténues
e a escuridão feche para sempre
as bocas fartas de clamarem.
Na vida como na poesia, António Salvado enfrenta as tempestades, navega
os seus mares procelosos (“preparo as velas para singrar/ até ao
conhecido do desconhecido”, diz o poeta), iça as suas velas, vence os
ventos, vive o “rio inseguro” da melancolia e os “rumorosos sinais
outonais”. É uma viagem dura e, às vezes:
Quão sinistro: a hora
agonizar, e perderem
o viço as pessoas
e as coisas, as aves
interromperam voos
fugidiamente mudas,
o claro do dia ceder
lugar à luz simulada.
Com breve intervalo
do lusco-fusco. E o mais.
À medida que o poema se aproxima do fim, também o leitor, porventura,
lançará a interrogação que o poeta fizera, antes: “Como esquecer?”
E a resposta, lá vem, bem nítida, nos dois poemas finais:
O que é amargura maior:
que aquilo que dizes, gritas,
mesmo escrito na água
mesmo que escrito no vento
mesmo que escrito em areia
(assim se lê a efemeridade) --
como chaga pungente permanece
e eternamente ficará
a circular dentro do sangue.
E o último poema que tem uma dimensão borgeana:
Vagabundo destino, em trajecto
de tumultos ou raras serenidades,
por diversas geografias suportando
traçados difíceis de montanhas,
de rios, mudo perante ocasionais
e perversos encontros, de que lugar
se aproxima agora, o roteiro quase
completo?
Experimentem os leitores, ler o longo poema em voz murmura, naquele acto
de apropriação de que falava Octávio Paz, ou tornando real a
recomendação de Eduardo Lourenço (“é como leitores que nós somos
literatura”), e terão a percepção de como a linguagem poética de António
Salvado , tão dele e tão nossa, ilumina as palavras e as coisas e as
emoções em que toca, tocando-nos fisicamente como a brisa do mar, na
procura da radicalidade de um mundo que, sendo seu, passa a ser nosso.
Passo a Passo, o segundo livro, prossegue idêntico caminho, num registo
poético diferente, mas no fundo sobre a mesma inquietação pessoal e a
superfície de um mundo interior que, na expressão da sua arte, alcança o
rumor do mundo.
Gostaria de sinalizar alguns poemas, mas sei que já me excedi no tempo.
Em todo o caso, penso que vale a pena incluir aqui um curto poema, por
aquilo que exprime como dilacerado instante que o autor vive inteiro, de
pé.
Que firmeza encontrar na incerteza
onde irá tropeçar alheio à via
que lhe aponte o além e sem tremer
e onde o tempo lhe traga mais um dia
de ofegante prever o pesadelo
e os minutos em breve rodopio.
Curiosamente, António Salvado conclui o livro com um apêndice, com
poemas que subitamente saem da temática originária e dominante da dor,
para assumirem o recorte clássico, em que o autor é mestre, e que
mergulham no esplendor do amor, outra faceta muito marcante da poesia de
Salvado. E quando pensava em tudo isto, percebi bem que essa
perspectiva continha, também, um significado muito importante de raiz
mitológica: o triunfo da vida, uma ode à alegria, aqueles momentos em
que, dizia Goethe, o tempo deveria ficar suspenso.
Querido Poeta
Talvez estas palavras para o poeta, palavras de coisa nenhuma quando
estamos face a uma obra tão singular na poesia portuguesa contemporânea,
pudessem ser substituídas, com proveito, pelo extraordinário poema de
abertura
E queria apenas, acrescentar: enquanto lia os seus versos, lembrei-me de
um livro recente de Yves Bonnefoy, que escreveu O Território Interior
-- também o meu Poeta não fez outra coisa senão caminhar pelo seu
“Território Interior” -- ,e avisou de que “a sociedade acabará sea
poesia se extinguir”. Jorge de Sena disse o mesmo por outras palavras:
“nunca a poesia salvou o mundo; mas nunca o mundo poderá ser salvo sem
ela”.
O poeta francês dizia, afinal, que “a palavra é a nossa principal
conexão com a realidade e a poesia a sua melhor via para percebê-la”,
pois “é o lugar da exigência da responsabilidade”.
No fundo, é essa a mensagem identificadora da obra poética de António Salvado: lugar de exigência ética e de responsabilidade.
Fernando Paulouro Neves
Castelo Branco, 25 de Fevereiro de 2014
Na apresentação do livro Ecos Trajecto seguido de Passo a Passo